quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Aborto em debate: questão social de saúde e política



Muito tem se discutido atualmente sobre a criminalidade a que é revestida a prática do aborto no mundo, mais especialmente no Brasil, onde vivemos, e amplos setores da sociedade têm se posicionado neste debate. Opiniões confundem-se e deixam a população sem esclarecimentos precisos sobre o tema. Preconceitos religiosos e sociais mesclam-se com a falta de informação geral transformando receios em pavor e semeando posições conservadoras.
O primeiro ponto a que nós, anarquistas, nos debruçamos quando refletimos nossa posição favorável à descriminalização do aborto, é o fato de que o mesmo já é feito em todo o planeta mesmo sendo considerado crime. No Brasil milhares de mulheres morrem ou ficam mutiladas diariamente graças a complicações de processos abortivos em clinicas clandestinas, ou com métodos famigerados como o uso de Citotec, agulhas, ervas, etc... Só em 2008 o poder judiciário do Mato Grosso do Sul tentou processar em torno de 10.000 mulheres por realizarem o aborto. A imposição de criminalidade além de não parar a prática de abortos favorece o surgimento de quadrilhas “especializadas” em realizar tal procedimento, fomenta o obscurantismo na formação sexual das pessoas e condena mulheres a buscar refúgio no submundo de guetos cirúrgicos. Portanto a descriminalização do aborto proporcionará com que estas mulheres sejam acolhidas em hospitais por médicos, enfermeiros, psicólogos e toda uma equipe preparada e estruturada para proceder a uma intervenção operatória dentro dos marcos necessários em higiene e salubridade poupando as pacientes de conseqüências mais drásticas que o fato em si. Além de que desta forma abre-se a possibilidade da gestante debater com seus entes queridos, profissionais de saúde e assistentes sociais, sem pré-conceitos, sobre se o aborto é mesmo a melhor resolução em seu caso específico.
Um outro ponto desta discussão a que temos dedicado atenção é a questão do direito à vida. Apesar dos esbirros do conservantismo religioso dizer o contrário a descriminalização do aborto não visa instituir o fetocídio na sociedade, mas sim superar esta cultura autoritária e de morte que faz com que aspectos da saúde das pessoas sejam tratados como bandidagem. Ninguém defende o aborto como método contraceptivo que possa substituir pílulas, injeções hormonais, preservativos e todos os métodos disponíveis para que as mulheres não engravidem. O que nós mulheres e homens militantes sociais temos defendido é que a criminalização gera um impedimento em se aprofundar este debate, obstruindo na prática a possibilidade de se pensar e construir uma nova abordagem nos serviços de saúde e educacionais que leve em consideração todo o leque de aspectos que formam a vida sexual e as funções biológico-reprodutivas das pessoas. Afinal por maiores que sejam as opções em métodos anticoncepcionais eles ainda não são difundidos de forma universal em nossa sociedade, atrapalhados, principalmente, por esta mesma moral maniqueísta do pecado e por esta organização da saúde e educação que vê situações decorrentes da atividade sexual como crime, o que logicamente faz com que o sexo e a reprodução como um todo seja mitificado. Além de que nenhum método anticoncepcional tem total eficácia, sendo todos sujeitos à possibilidades de falha, o que gera mais um aspecto favorável à descriminalização.
Outro ângulo crucial sobre o tema, que é propositalmente esquecido pelos conservadores em geral, é que vivemos numa sociedade dividida em classes, e que as classes que dominam a economia atual tem pleno acesso a serviços privados de saúde, medicamentos, acompanhamentos psicológicos e terapêuticos caríssimos, possibilidades que as classes trabalhadoras não usufruem, sem contar que o impacto econômico de uma gravidez não planejada numa família trabalhadora é bombástico já que não possuem o conforto e estrutura material das castas abastadas. Em uma sociedade em que as mulheres trabalhadoras não têm recursos nem tempo para grandes instruções, em que vivem desestruturadas financeiramente do nascimento ao óbito, em que adultos trabalhadores são soterrados pelas crendices e superstições do fatalismo religioso enquanto suas crianças são hipnotizadas pelo sexismo televisivo, a criminalização do aborto traz uma clara conotação de domínio de classe, obrigando as mulheres trabalhadoras a terem filhos para servir ao mercado de mão-de-obra.
Um dos mais nefastos argumentos que o conservadorismo vem usando quer apelar para supostos “sentimentos de mãe”, trazendo nas entrelinhas o milenar machismo patriarcal ao tentar incumbir às mulheres papéis pré-condicionados por algum deus, quando na verdade é o capitalismo machista que debate-se para manter as mulheres como trabalhadoras da reprodução da vida para o mercado de mão-de-obra e, tenta se esconder sob ufanismos e pseudo-sentimentalismos para manter esta função desprovida de valor econômico.
Resumindo, somos favoráveis à descriminalização do aborto, pois ele já é realizado em guetos e queremos segurança e salubridade para nossas vidas. Somos favoráveis à descriminalização do aborto, pois temos o direito ao nosso corpo, nossa vida e temos o dever de buscar o melhor contexto para dar luz aos nossos filhos.
* Publicado na edição de Março/Abril de 2009 do jornal O Libertário, informativo do PAEM.