sábado, 24 de outubro de 2009

Infiltrações Burguesas na Doutrina Socialista


Texto escrito por Errico Malatesta, originalmente publicado no jornal Il Pensiero, n º 10 em 16 de maio de 1905; extraído do livro Anarquistas, Socialistas e Comunistas, publicado pela Ed. Cortez, 1989.

Já faz um certo tempo que os socialistas reformistas puseram-se a modificar não somente a tática, mas também as teorias do socialismo, para justificar todas as suas renúncias. Um certo número de idéias e preconceitos de ordem moral, política e econômica, que são em sua essência burgueses, infiltram-se assim, pouco a pouco, na doutrina socialista.
A gravidade deste fenômeno será facilmente compreendida se se considerar que ele toca não somente facções mais moderadas do partido socialista democrata, mas que ele começa a se manifestar igualmente nas outras facções que se proclamam revolucionárias e intransigentes.
Os jornais, por exemplo, nos informam que mesmo o bem conhecido socialista italiano intransigente Arturo Labriola, defendeu em uma de suas últimas conferências que “o problema mais urgente que se deve resolver não é o da distribuição da riqueza, mas o da organização racional da produção”.
É um erro sobre o qual é importante ater-se, porque ele compromete as próprias bases da doutrina socialista, permitindo deduzir logicamente conclusões que nada têm de socialistas.
Os conservadores de todas as escolas sustentam, desde Malthus, que a miséria não é devida à repartição injusta da riqueza ou à insuficiência da indústria humana, mas ao fato de que a produção é limitada.
Em razão de sua origem, historicamente, e em razão de sua própria essência, o socialismo é a negação desta tese. Ele é a afirmação de que o problema social é antes de mais nada uma questão de justiça social, uma questão de distribuição. Mas desde que os socialistas se puseram a pactuar com o poder e com as classes proprietárias, isto é, desde que deixaram de ser socialistas, sustentam também as teses dos conservadores, sob uma forma um pouco renovada.
Se a tese adotada por Labriola fosse verdadeira, o antagonismo entre patrões e operários não seria mais irredutível, pois a solução seria o interesse comum dos assalariados e dos patrões em aumentar a quantidade de produtos. Em outros termos, o socialismo seria falso, pelo menos como meio imediato para resolver a questão social. E, de fato, já vimos Turati, sustentar que os operários devem tomar o cuidado de, durante as greves, não arruinar o patrão nem sua empresa; antes de Turati, Ferri também dizia que os socialistas devem joso para os proletários italianos serem governados por uma burguesia rica, culta, “moderna”.

Fazer com que o proletariado consciente abandone o caminho da luta de classes e lançá-lo no impasse do reformismo burguês é o objetivo da nova propaganda dos socialistas, e esta propaganda é ainda mais perigosa por apoiar-se em um fato real: os produtos não existem atualmente em quantidade suficiente para satisfazer as necessidades de todos, mesmo em limites restritos. Após ter impressionado as pessoas demonstrando-lhes este fato, eles fazem do que é o efeito a causa, graças a um artifício enganador, e tiram disso as conclusões errôneas que são úteis ao objetivo que eles se propõem.
É preciso revelar abertamente seus procedimentos.
Não há nenhuma dúvida que a produção em geral, particularmente no que concerne aos artigos de primeira necessidade, é imperfeita, insuficiente, ridiculamente limitada em relação ao que ela poderia e ao que deveria ser.
Aquele que tem fome e que passa diante das lojas repleta de víveres, aquele a quem tudo falta e vê como os comerciantes têm dificuldade em vender as mercadorias,muito abundantes em relação à demanda, podem pensar que há abundância de bens para todo mundo e falta somente dinheiro para comprá-los. Enganados pelos números mais ou menos cabalísticos das estatísticas e talvez por disporem de um argumento surpreendente e penetrante para sua propaganda, certos anarquistas sustentaram que a produção efetiva ultrapassa em muito as necessidades racionais e que bastaria que o povo se tornasse senhor dela para que todo mundo pudesse viver na abundância. As pretensas crises de superprodução (isto é, o trabalho que falta porque os patrões não conseguem vender os produtos acumulados) servem com freqüência para confirmar no espírito da maioria esta impressão superficial.
Mas todos aqueles que sabem raciocinar um pouco friamente não tardam a perceber que esta pretensa riqueza nada mais é senão uma ilusão.
O que a grande massa da população consome não é suficiente para cobrir as necessidades mais elementares. A maioria dos homens é mal nutrida, mal alojada, mal vestida e lhe falta quase tudo; muitos morrem de fome e de frio. Se se produzisse realmente o necessário para satisfazer todo mundo, onde se acumularia o excedente anual da produção, visto que a maioria não consome sequer o mínimo? E os capitalistas, que fazem produzir para vender e para extrair lucro, seriam, portanto, bastante loucos para continuarem a fazer o que eles não poderiam vender?
Pode acontecer que se produza mais do que é necessário em um dado momento, por causa da concorrência que fazem os capitalistas e da ignorância em que cada um deles se encontra quanto à quantidade que os outros podem lançar no mercado em um dado momento; por causa do espírito de especulação, da sede do ganho, do erro nas previsões. E isto particularmente na indústria manufatureira, cujas capacidades de produção são as mais elásticas.
Mas, então, a crise não tarda a se produzir, a suspensão do trabalho vem restabelecer o equilíbrio e, em definitivo, normalmente só o que é consumido é produzido. É o consumo que determina a produção, não o inverso.
Além disso, no que diz respeito aos produtos alimentícios, que têm uma importância vital, basta ver as terríveis conseqüências, nos países agrícolas, de uma colheita insuficiente para viver de um ano para o outro, se bem que a maioria dos homens esteja mal alimentada.
Se o conjunto da riqueza produzida todos os anos — da qual mais da metade é hoje absorvida por um pequeno número de capitalistas — fosse repartida entre todos de modo eqüitativo, as condições dos trabalhadores não seriam notavelmente melhoradas. A parte que lhes caberia não seria aumentada por coisas indispensáveis, mas por uma grande quantidade de coisas sem importância, praticamente inúteis e, às vezes, nocivas. Não haveria mudança sensível no que concerne ao pão, à carne, à moradia, ao vestuário e a outros objetos de primeira necessidade, mesmo que a parte consumida ou desperdiçada pelos ricos fosse repartida entre todos.
Estamos, portanto, de acordo: a produção é insuficiente e é preciso aumentá-la.
Mas por que não se produz mais atualmente? Por que há tantas terras que não são cultivadas ou o são mal?
Por que tantas máquinas e tantos braços não empregados? Por que não se constroem casas para todo mundo,
por que não se fabrica em quantidade suficiente para vestir todos os mal vestidos quando os materiais abundam, assim como os homens capazes e impacientes em utilizá-los?
A razão é bem clara, e nenhum daqueles que se dizem socialistas deveria ignorá-la. É porque os meios de produção, a terra, as matérias-primas, os instrumentos de trabalho não pertencem àqueles que necessitam dos produtos. Eles constituem a propriedade privada de um pequeno número de pessoas que deles se servem para fazer os outros trabalharem em proveito delas mesmas, na medida e na forma que melhor corresponde aos interesses próprios desta minoria.
Não é porque ele é um ser humano que o homem tem, atualmente, o direito a uma parte dos produtos: ele só come e só vive se o capitalista, o proprietário dos instrumentos de produção, obtém seu lucro explorando seu trabalho.
Ora, o capitalista não tem interesse em desenvolver a produção para além de um certo limite: ele tem mesmo interesse em manter constantemente uma certa escassez. Em outras palavras, ele faz produzir enquanto pode revender o produto mais caro do que seu custo de produção; e aumenta sua produção enquanto seus lucros aumentarem paralelamente. Mas tão logo ele perceba que, para vender, é-lhe necessário vender mais barato e que a abundância levaria a uma diminuição absoluta de seu lucro, ele pára a produção e chega até mesmo — assim como há mil exemplos disso — a destruir uma parte dos produtos disponíveis para aumentar o valor dos produtos restantes.
Assim, para aumentar a produção de modo a que ela possa satisfazer as necessidades de todos, é preciso que ela esteja orientada em função destas necessidades e não em função do lucro de um pequeno número somente. Todos devem ter o direito de usufruir destes produtos; todos devem ter o direito de utilizar os meios de produção.
Se todos aqueles que têm fome tivessem o direito de pegar o pão do qual precisam, seria necessário produzi-lo para todo mundo e, a partir daí, as terras seriam cultivadas e a velha rotina substituída por métodos de cultura mais produtivos. Mas se, como é o caso atualmente, as riquezas existentes em meios de produção e em produtos acumulados pertencem a uma classe particular, e se esta classe, à qual nada falta, pode fazer fuzilar aqueles que gritam muito alto porque têm fome, então a produção permanecerá mantida em um limite fixado pelos interesses dos capitalistas.
Conclusão: é na distribuição restrita que é preciso procurar a causa atual da falta de produção, é esta causa que é preciso destruir para eliminar seu efeito.
Para que se produza em quantidade suficiente para todos, é necessário que todos tenham direito a um consumo suficiente.
Assim se acha demonstrada a tese socialista: o problema da miséria é antes de mais nada um problema de distribuição.

* publicado na edição de Agosto de 2008 do jornal O Libertário, informativo do PAEM.