sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

As sociedades complexas precisam do Anarquismo


Escrito por Sam Dolgoff, publicado originalmente na obra The Relevance of Anarchism to Modern Society, extraído do livro A Relevância do Anarquismo para a Sociedade Moderna, lançado por Faísca publicações em 2005.


É um erro assumir que os anarquistas ignoram a complexidade da vida social. Pelo contrário, os anarquistas clássicos sempre rejeitaram aquele tipo de “simplicidade” que dissimula a arregimentação em favor da complexidade natural que reflete a riqueza e a diversidade multifacetadas da vida social e individual. O matemático cibernético John B. McEwan, ao escrever sobre a relevância do anarquismo para a cibernética, explica:

“Socialistas libertários, sinônimo para os anarquistas não individualistas, especialmente Kropotkin e Landauer, mostraram uma compreensão antecipada da rede complexa de mudança de relacionamentos, envolvendo muitas estruturas de atividades e apoio mútuo correlativos, independente da coerção autoritária. Foi contra essa prática que eles desenvolveram suas teorias de organização social [...].”

Uma das maiores contribuições de Proudhon para a teoria anarquista e para o socialismo em geral foi a idéia que a verdadeira complexidade da vida social necessita a descentralização e a autonomia das comunidades. Proudhon sustentava que “por meio da complexidade de interesses e do progresso das idéias, a sociedade é forçada a renunciar ao Estado [...] abaixo do aparato do governo, sob a sombra de suas instituições políticas, a sociedade estava produzindo sua organização, lenta e silenciosamente, fazendo para si mesma uma nova ordem que expressava sua vitalidade e autonomia[...].

Da mesma forma que seus antecessores, Proudhon e Bakunin, Kropotkin elaborou a idéia de que a verdadeira complexidade da vida social precisava da descentralização e da autogestão da indústria pelos trabalhadores. A partir de seus estudos da vida econômica na Inglaterra e na Escócia, ele concluiu:

“Produção e troca representavam uma tarefa tão complicada que nenhum governo (sem estabelecer uma ditadura burocrática, ineficiente e incômoda) estaria apto para organizar a produção, se os próprios trabalhadores, por meio de suas associações, não fizessem isso em cada ramo da indústria; em toda produção surgem diariamente milhares de dificuldades que [...] nenhum governo pode esperar prever [...]. Somente os esforços de milhares de inteligências trabalhando sobre os problemas podem cooperar no desenvolvimento do novo sistema social e encontrar soluções para as milhares de necessidades locais.”

Descentralização e autonomia não significam a divisão da sociedade em grupos economicamente auto-suficientes, isolados e pequenos, o que não é possível e nem desejável. O anarquista espanhol Diego Abad de Santillán, Ministro da Economia no período inicial da Guerra Civil Espanhola (dezembro de 1936), relembrou alguns de seus companheiros:

“Definitivamente precisamos perceber que não estamos mais [...] em um pequeno mundo utópico [...]. Nós não podemos conceber nossa revolução econômica em nível local; a economia local pode apenas causar privação coletiva [...]. A economia é hoje, um vasto organismo e todo isolamento deve provar-se prejudicial [...]. Devemos trabalhar com um critério social, considerando os interesses de todo o país e, se possível, de todo o mundo [...].

Deve-se chegar a um meio-termo entre a tirania sufocante da autoridade desenfreada e o tipo de “autonomia” que conduz ao insignificante patriotismo local, à separação em pequenos grupelhos, e à fragmentação da sociedade. A organização libertária deve refletir a complexidade das relações sociais e promover a solidariedade nas proporções mais amplas possíveis. Isso pode definir-se como federalismo: coordenação por meio do livre acordo – local, regional, nacional e internacionalmente. [Isso consiste em] uma enorme rede coordenada de alianças voluntárias compreendendo a totalidade da vida social, na qual todos os grupos e associações usufruam os benefícios da unidade ao mesmo tempo em que exercitam sua autonomia dentro de suas próprias esferas de ação e expandem a extensão de sua liberdade. Os princípios organizacionais anarquistas não são entidades separadas. A autonomia é impossível sem a descentralização, e a descentralização é impossível sem o federalismo.

A crescente complexidade da sociedade faz o anarquismo mais e não menos relevante para a vida moderna. É precisamente essa complexidade e diversidade, e acima de tudo sua preocupação central pela liberdade e pelos valores humanos, que levaram os pensadores anarquistas a fundamentar suas idéias nos princípios da difusão do poder, autogestão e federalismo. O grande atributo da sociedade livre é que ela é auto-regulada e “traz dentro de si as sementes de sua própria regeneração”. (Martin Buber) As associações autogovernadas serão flexíveis o suficiente para ajustarem suas diferenças, corrigirem-se e aprenderem com seus erros, experimentar novas e criativas formas de vida social e, por meio disso, chegar a uma harmonia verdadeira em um plano humanístico mais alto. Erros e conflitos restritos à alçada limitada de grupos com objetivos especiais podem causar danos limitados. Porém, as decisões criminais e os erros realizados pelo Estado e outras organizações centralizadas de forma autocrática, que afetam nações inteiras, e até mesmo o mundo todo, podem ter as conseqüências mais desastrosas.

A sociedade sem ordem (como o significado da palavra “sociedade”) é inconcebível. Porém, a organização da ordem não é monopólio exclusivo do Estado. Pois, se a autoridade do Estado é a única garantia da ordem, quem irá vigiar o vigia? O federalismo é também uma forma de ordem que precedeu a autoridade do Estado. Porém, essa é uma ordem que garante a liberdade e a independência de indivíduos e associações que constituem as federações, livre e espontaneamente. O federalismo não é como o Estado, nascido a partir do desejo do poder, mas sim o reconhecimento da inelutável interdependência da humanidade. O federalismo surge dos desejos pela harmonia e solidariedade.

* Publicado na edição de Janeiro/Fevereiro de 2010 do jornal O Libertário, informativo do PAEM.